1º outubro 2012
Ensinar as
crianças, aprender com as crianças
Você deve lembrar algumas imagens daqueles
quadros de famílias nobres ou mesmo reais, entre os séculos XVII e XVII. Pelo
menos algumas dessas imagens você deve ter visto. Alguns quadros famosos vêm
desde pelo menos a Renascença, outros
chegam até mesmo ao século XIX. Há neles, entre outros, um detalhe que chama a
atenção. As pessoas estão sempre posando com o ar solene de sua nobreza.
Aquelas eram as fotografias de suas épocas. As pessoas estão ali tão majestosas
que algumas acabam sendo mesmo ridículas. Mas em algumas há uma imagem dentro
da imagem que chama também a atenção. Em muitos desses quadros há crianças: um
par de príncipes, uma menina-infanta, um jovem nobre.
E o que há de notável nesses quadros,
alguns deles de grandes pintores da época? Há um pequeno e inevitável detalhe
muito interessante. Michel Foucault abre um de seus livros mais conhecidos: as
palavras e as coisas, com um curioso olhar sobre um quadro de Velásquez,
chamado: “as meninas”.
E, lá estão elas. No rosto, no olhar, na
pose, nas roupas e nos calçados, são em quase tudo como os adultos. Sendo
crianças, elas são réplicas das pessoas adultas ao seu lado.l Não há gestos do
rosto ou do corpo, assim como não há vestidos ou sapatos próprios para elas,
duas meninas. Assim, as crianças de então, sendo meninos ou meninas, não são
mais do que desafortunados e imperfeitos espelhos de como os adultos, seus
pais, seus mestres, são, ou acham que devem ser.
Em um belo livro sobre a família e a
criança no Ocidente, Phillipe Ariés lembra que por muitos séculos, em toda a
Europa a criança e o adolescente mal existiam[1].
Quer dizer, por toda a parte, como agora, meninos e meninas. E mais do que
agora, porque mesmo com índices muito altos de mortalidade infantil, as
famílias eram quase sempre numerosas. No entanto, de um ponto de vista social,
como sujeitos de uma família, de uma igreja, de uma comunidade, de uma
comunidade local ou nacional, como um valor de cultura, meninas e meninos eram
seres de um pequeno valor. Vagas figuras múltiplas sem maior importância,
habitantes de alguns raros lugares e intervalos do mundo dos adultos.
A criança era então percebida como um quase
acidente da natureza, ou da vontade de Deus no “crescei e multiplicai-vos”, e a
sua razão de ser estava em deixar de ser criança o mais cedo possível. Sua
função era crescer, tornar-se um pequeno trabalhador útil em cedo, sobretudo
nas famílias mais pobres, aprender um ofício útil, mais do que o saber letrado
de seu tempo, e “virar gente”, isto é, um adulto precoce, que quase emergia
direto da adolescência.
Até
o século XVII, a criança, como tal, não existia nas nossas sociedades. Era uma
coisinha à qual se dava muito pouca importância. A vida humana começava
realmente entre os 7-10 anos. O
sentimento da infância nasce, na Europa, como
sentimento da família e com a constituição, pelas grandes ordens
religiosas, de uma educação separada, que preparava a criança para ávida
adulta. Este regime de separação durou os anos cinqüenta e sessenta. Antes
desta data a idade adulta era a idade ideal, e a educação consistia em preparar
a criança para este período. Atualmente tudo foi alterado[2].
Assim, faltava na imensa
maior parte das sociedades em vários séculos do Ocidente, quase tudo aquilo que
hoje em dia caracteriza “o mundo da criança”. Não havia o “quarto da criança,
de modo algum. O berço era apenas para o bebês. E como era costume uma mãe ter
uma seqüência numerosa de filhos, logo o mais velho dava o seu lugar ao que
acabava de chegar. Raros os brinquedos, a não ser os que as próprias crianças
criavam. Quase nada de comida de criança, de roupas, de calçados, de horários,
de pediatras, de cuidados especiais e de
ternos carinhos de pais e dos outros. As crianças deviam ser socializadas com
rigor e os castigos, muitos deles violentos, eram muito comuns.
Tudo isto nos leva a pensar algo que a um
primeiro olhar de nosso tempo parece muito estranho. E, no entanto é tão comum,
tão freqüente e tão variado ao longo das diferentes eras da história e entre as
diversas culturas humanas. Uma coisa é aquilo que nós somos
biopsicológicamente. Por exemplo: macho e fêmeas, crianças, adolescentes,
jovens, adultos e velhos. Outra coisa é a construção sociocultural daquilo que nós somos, daquilo que devemos
ser ou podemos ser por habitarmos uma sociedade e vivermos a sua cultura.
Claro. do ponto de vista da natureza, nós somos gerados e nascemos mais ou
menos da mesma maneira, e crescemos e nos desenvolvemos seguindo os mesmos
ritmos da vida em nós. Mas, ao longo da história da humanidade e, mais ainda,
entre as diversas sociedades humanas do passado e do presente, o “ser criança”,
o “ser jovem”, o “ser adulto”, o “ser velho”, o “ser mulher” ou o “ser homem”
foram e seguem sendo categorias sociais representadas e tratadas de maneiras
muito diferentes. Sabemos que há sociedades em que um homem muito velho é
tratado como um sábio e recebe uma deferência especial dos “mais moços”. E há
outras em que ele próprio deve procurar a sua morte, para deixar mais comida
aos “mais moços”.
A quase inexistência de um “mundo cultural”
próprio para a criança, revela que durante séculos, no Oriente e no Ocidente,
meninas e meninos eram considerados como seres sem lugar próprio, apêndices da
casa, da família e da comunidades. O processo apressado de seu desenvolvimento
e a passagem ligeira da infância a uma precoce adolescência em que muitas
“moças” já estavam casadas e eram mães, importava bem mais do que cada fase,
cada estágio do ritmo natural da vida da pessoa. Desde muito cedo a criança era
preparada para vir a ser em curto tempo: “um alguém na vida”.
Na mesma idade em que nossos filhos hoje
estão escolhendo as primeiras namoradas e as primeiras profissões, jovens
indígenas são guerreiros casados, e muitas moças com menos de 16 anos já eram
esposas e mães de dois ou três filhos. Você sabe com que idade Julieta morreu
por amor a Romeu? E Romeu? Já na beira do século XX, com que idade casou-se o
Mahatma Gandhi, com Kasturbai, uma jovem menina que lhe foi escolhida pelos
pais e que ele conheceu pouco antes do
dia do casamento? Até dois séculos
atrás, mesmo na Europa, a idade média das pessoas era muito baixa, a era vida
breve e era preciso começar cedo a ser “gente grande”.
E as crianças não eram propriamente seres
em si, mas seres para os outros. Eram propriedade de seus pais, servas de suas
famílias, e a infância era compreendida como uma breve e
dura viagem a uma precoce idade adulta: aquela em que meninos e meninos começam
a “contar”. E começam a contar porque passam do “passivo” da casa para o
“ativo” da família, na medida em que através, primeiro do seu ingresso no rol
dos serviços domésticos e, depois, em algum trabalho produtivo, crianças e
adolescente começavam a contar como atores com um lugar próprio na família e na sociedade.
Raras crianças pobres sentavam por mais do
que três anos nos bancos duros de uma sala de aulas. Os que prosseguiam os seus
estudos, sobretudo após o século XVII, eram entregues a uma educação rigorosa e
muito pouco sensível aos seus sentimentos, aos seus pensamentos. Crianças e
jovens existiam para aprender e obedecer. Para aprender a obedecer. Eram então
comuns em várias línguas ditos tradicionais como estes: “criança não tem
querer”; “criança não tem sentir”;
“criança não tem pensar”; “criança não tem juízo”. A criança era medida
sempre por sua incompletude psíquica e cultural, diante da pessoa adulta
educada, tomada como padrão.
Pensava-se a criança e procedia-se para com
ela de formas semelhantes a como se fazia com os indígenas (os “selvagens”),
com os negros, como os outros que não nós, e que para serem “alguém de
respeito” deveriam aprender a ser a cópia mais próxima de “nós mesmos”.
Uma pequena passagem do livro A
descoberta do outro, de Gustavo Corção, traduz muito bem o olhar do adulto
sobre o sentir, o querer e o pensar das crianças.
O menino achava que as pessoas grandes não
tinham bastante seriedade e também nunca se podia contar com elas, porque hoje
queriam brincar e amanhã não queriam. Uma coisa agora provocava o riso; a mesma
coisa logo trazia castigo. Às vezes a tia perguntava porque estava tão quieto.
- Estou pensando.
A tia fazia cara de pouco caso e declarava
que criança não pensa. Criança também não devia ficar ouvindo conversa de gente
grande. Todas as coisas dividiam-se com grande clareza entre o que era
permitido e o que era proibido; nas histórias também o bom era bom e o mau era
mau. O ar era transparente e a luz crua; o mundo era grande e sempre o mesmo.
Mudava sempre, mas era sempre o mesmo.[3]
Mas as crianças de antes como as de agora,
tinham e seguem tendo os seus
sentimentos, suas emoções, suas sensibilidades, seus pensamentos e suas idéias,
seus imaginários, desejos e sonhos. Suas alegrias e seus sofrimentos.
Poucos escritos foram tão sensíveis a este
“ser da criança” quanto João Guimarães Rosas que, no entanto, escreveu apenas
um pequeno conto para crianças. Se você não conhece ainda (e não sabe o que
está perdendo) leia a novela Miguilim, do livro Manuelzão e
Miguilim. Leia os breves e
sábios contos do Primeiras estórias ou de Tutaméia – terceiras estórias, em
que meninos e meninas da roça, dos fundos dos sertões de Minas Gerais são os
protagonistas.
Era o Dito, tirando-o por um braço. O Dito
era menor mas sabia o sério, pensava ligeiro as coisas. Deus tinha dado a ele
todo o juízo. E gostava, muito, de Miguilim. Quando foi a estória da Cuca, o
Dito um dia perguntou: - “Quem sabe é pecado a gente ter saudade de
cachorro?...” O Dito queria que ele não chorasse mais por Pingo-de-Ouro, porque
sempre que ele chorava o Dito também pegava vontade de chorar junto.
- Eu acho, Pai não quer que Mãe converse
nunca mais com o tio Terez... Mãe está soluçando em pranto, demais da conta.
Miguilim entendeu tudo tão depressa, que
custou para entender. Arregalava um sofrimento. O Dito se assustou: - “Vamos na
beira do rego, ver os patinhos nadando...” acrescentava. Queria arrastar
Miguilim[4].
Aí estão as crianças. Sujeitas ao “mundo das pessoas grandes”, elas criam como
podem os seus próprios “mundos das crianças”. Bem mais do que aprendemos a
acreditar, desde muito cedo e, mais ainda, nas idades próximas ao momento do
ingresso na escola, elas são pequenos e completos seres de pensamento e de
emoção. São seres que vivem as próprias “brincadeiras” com uma criativa seriedade
que, quando vista com atenção, sempre nos encanta e emociona. Antes de
ingressarem a força no mundo cronometrado e utilitário em que vivemos nós, os
adultos, elas habitam o território da gratuidade. Elas vivem um imaginário de
idéias, fantasias realistas e emoções de uma enorme fertilidade. E é o nosso
“mundo adulto” aquele que, aqui e ali, parece pobre, árido, utilitário, e pouco criativo, quando
comparado com o mundo-dentro-de-nosso-mundo, que as crianças criam e inventam
quando pensam, quando imaginam e quando se reúnem para brincarem juntas. Se
possível, longe dos adultos.
Bem ao contrário do que uma difusa e
crescente “pedagogia da pressa e do progresso” sugere, crianças não são seres
incompletos, semi-selvagens e imperfeitos, a quem toca “civilizar”, uma
educação iniciada no círculo familiar e continuada na sala de aulas da escola.
Em cada momento de suas vidas, em cada passo dos estágios de seus
“desenvolvimentos biopsicológicos”, meninas e meninos crianças são seres
sensíveis e sábios. Sim, isto mesmo: sábias. Elas são sujeitos de uma vida que
não vale pelo que ela (a vida e a criança) “vai ser ainda”, “vai ser um dia”,
“vai ser quando crescer e virar gente”. A cada momento de cada dia de suas
vidas, crianças são seres plenos de-si-mesmo, e valem pelo que são “agora”, e
pela vida que, agora, em cada momento de seu estar-no-mundo, elas vivem.
Meninos e meninas devem ser ensinados em
casa, na escola e em outros círculos culturais de socialização, para um dia
virem a ser úteis: “um alguém na vida”, não resta dúvida. Mas elas devem ser
educadas para algo que vai além, muito além deste propósito instrumental e
utilitário. Elas não nasceram para crescerem depressa, realizando em seu ser a
ansiosa imagem de nossos desejos paternos ou docentes. Crianças devem ser
educadas para aprenderem a encontrar, com o andar de seus próprios passos, os
seus próprios caminhos. Devem aprender conosco a serem diferentes de nós. Se
possível, melhores do que nós somos.
E uma mulher, que segurava um bebê no colo,
disse: Fala-nos dos Filhos.
E ele disse:
Vossos filhos não são os vossos filhos.
São os filhos e as filhas do desejo da Vida
por si mesma.
Eles vêm através de vós, mas não de vós,
E apesar de estarem convosco, não pertencem
a vós.
Podeis dar-lhes vosso amor, mas não vossos
pensamentos.
Porque eles têm seus próprios pensamentos.
Podeis abrigar seus corpos, mas não suas
almas,
Pois suas almas vivem na casa do amanhã, a
qual vós não podeis visitar, nem mesmo em vossos sonhos.
Podeis esforçar-vos em ser como eles, mas
não tentai faze-los como vós.
Pois a vida não volta para trás, nem
permanece no dia de ontem.
Sois os arcos dos quais seus filhos, como
flechas vivas, são arremessados.
O arqueiro vê o alvo no caminho, e Ele vos
dobra como o Seu poder para que Suas flechas possam ir longe e velozes.
Deixai que o Arqueiro vos curve com
alegria;
Pois assim como Ele ama a flecha que voa,
Ele também ama o arco que é estável[5].
Devem aprender a saber descobrir, entre os
seus passos e ao longo de seus caminhos, as suas verdadeiras vocações, e,
assim, a se realizarem plenamente em-si-mesmos.
Em-si-mesmos, mas através de um aprendizado que desde muito cedo os
torne seres da vida crescentemente abertos a três círculos de diálogos
fraternos e solidários: o diálogo com-eles-mesmos (a esquecida arte da
auto-reflexão, da meditação, da vida interior); o diálogo amoroso com os seus
outros; o diálogo amplo e aberto com a Vida e com o seu Mundo.
Pode ser que estes propósitos de uma
educação humanizadora (e não robotizadora)
da criança pareça algo ultrapassado e romântico. Este deve ser então o
momento de lembrarmos um recente e importante documento da UNESCO dirigido a
educadores de todo o mundo. Ele foi elaborado por uma grande equipe
internacional de pessoas dedicadas à educação. Foi coordenado pelo pensador
francês Jacques Dellors e seu objetivo era traçar as linhas do que deveria ser
uma “educação para o século XXI”. Foi
traduzido em várias línguas e em Português tomou este nome: Educação: um
tesouro a descobrir[6].
Pois bem. No capítulo 4, o capítulo central
do livro, são estabelecido os “quatro pilares da aprendizagem”, os pilares da
educação. E, quais são eles? primeiro: aprender a fazer, não apenas no
sentido instrumental de praticar bem uma profissão, mas no sentido social de
criar contextos mais cooperativos do que competitivos de trabalho produtivo. Segundo: aprender a
aprender, isto é, não aprender acumulativamente conteúdos de conhecimentos
prontos, mas aprender ativamente a criar os seus próprios saberes e
significados. Terceiro: Aprender a conviver, como o aprendizado
essencial de uma vida solidária, co-responsável e generosa. Todo o oposto dos
objetivos de competência-competitiva da educação do “mundo dos negócios. Quarto
(e aquele em que deságuam os outros três): Aprender a ser. Aprender a
ser-si-mesmo. Aprender a criar-se como uma pessoa livre e aberta a estar sempre
transformando-se na direção de uma plena realização de suas vida e de seu
destino.
Estamos acostumados a projetos quase sempre
projetivos. Projetos voltados para um futuro que não sabemos como será, nem
para nos e, principalmente, nem para os nossos filhos. Estamos acostumados a
projetos de valor instrumental. Projeto
de vida em que vale bem mais o que é útil, rentável, prático, seguro e, se
possível, lucrativo, do que é de fato bom, belo e verdadeiro. O que é que você faria quando sonha ter um
filho “médico” e um dia ele toma coragem e confessa que não deseja ser outra
coisa a não ser... “bailarino?”.
Educamos “para”. Educamos para que as
pessoas deixem de ser o tempo todo o que
são agora, e venham a ser algo diferente do que são, algo a mais, algo além de.
E este “a mais” e este “além”, com a melhor das intenções, é sempre desenhado
com os nossos olhos e através de nossas mãos. De certo modo este projeto de “ser
para o futuro” é inevitável e verdadeiro.
Crianças crescem, mudam, se transformam
seguindo leis da natureza inscritas em seus corpos e em seus espíritos. Educar
crianças e jovens significa sobrepor a este processo da natureza um outro. Um
processo de integração em um mundo de vida social cotidiana através dos
aprendizados essenciais de sua cultura.
Mas ao tornarmos esta “educação” a razão
central do ensinar alguma coisa, estamos correndo o risco de tornar um dos atos
humanos de ida-e-volta mais essenciais e mais misteriosos: o
ensinar-e-aprender, algo sempre projetado para um futuro visto como uma arena
de lutas, onde, uns contra os outros, vencem os mais capazes, os mais aptos, os
mais competentes, os mais competitivos. Ou seja, a imagem perversa do “estudante
bem sucedido” segundo os manuais de “sucesso na vida” Daí a falsa pergunta tão
freqüente: “para o que serve aprender isto”? Nesta visão pragmática, as
crianças precisam ser ensinadas, capacitadas, instrumentalizadas, mas não
propriamente educadas. Elas precisam aprender depressa, funcional e
formalmente, para serem “promovidas”. Para seguirem “sempre em frente”. Para
serem lançadas o mais cedo possível “na vida”, “no trabalho”, “no
mercado”. Para um sempre “amanhã” em
nome do qual o próprio presente se torna apenas um tempo a ser superado,
deixado para trás. “Cresce menino, e vê se estuda e aprende para você um dia
ser alguém na vida”. E talvez ele seja um “alguém de sucesso”, sobretudo se
dominar cedo uma variedade enorme de linguagens do computador. Mas que lástima
a vida deste “homem de sucesso”, se um dia ele descobrir que “venceu na vida” e
nunca leu os livros de João Guimarães Rosa, os poemas de Cecília Meireles, e
nunca ouviu os últimos quartetos de Beethoven.
Pois “ser alguém na vida” algumas vezes
é: “tornar-se uma pessoa de bem”, um
“alguém honrado, confiável, criativo, generoso e co-responsável pela criação de
sua própria vida e do mundo de sociedade e cultura onde ele a vive. Esta
poderia ser a pessoa que vive uma vida de qualidade em seu próprio ser,
Ou seja, naquilo que ela aprendeu ao se educar. Outras vezes – na maior parte
das vezes – “ser alguém” é instruir-se para conquistar uma boa profissão,
conseguir um bom emprego e tornar-se depressa uma “pessoa de sucesso”. Um
alguém bem pobre de vida interior, mas afortunado o bastante para acumular
todos os bens que lhe garantam uma boa qualidade de vida.
Ora, na verdade uma educação repressiva,
reprodutiva, socialmente distribuída segundo critérios muito desiguais e, em
geral utilitária e instrumental (em que a própria pessoa que aprende é
percebida cada vez mais como um “instrumento no mundo dos negócios”) não era,
mesmo em séculos passados, a única ou mesmo a dominante. Desde há muitos anos
educadores e escolas de pedagogia procuraram compreender a criança de um outro
modo, e procuraram meios de educa-la a partir da compreensão profunda de como
ela era, como sentia, como pensava e como vivia, a cada momento, a sua
experiência presente de vida de agora. Como meninos e meninas são em suas peculiaridades
próprias e, não, como uma cópia imperfeita e inacabada da pessoa adulta e
educada.
Embora bem menos do que agora, durante toda
a Idade Moderna houve uma relativa variedade de teorias sobre a criança e de
projetos de pedagogias a elas dirigidas. Duas singelas imagens nos ajudariam a
compreender duas posições quase opostas. Em uma delas a criança é desenhada
como uma lousa em branco. Como um pequeno quadro-negro vazio que compete a quem
sabe: um pai, um mestre, um professor, preencher com o seu saber. Em seu ser, em sua mente são
escritos-inscritos com o saber dos adultos, os símbolos, os saberes, os sentidos, os significados, as
sensibilidades e as sociabilidades com que o infante (aquele que não fala), a
criança (aquele que deve ser criado), ou o aluno (aquele que deve aprender)
deveria ser educado. Com que ela deveria incorporar à disciplina do corpo,
da mente e do espírito, os conhecimentos
úteis e os valores oriundos das diferentes gramáticas da vida social de seu mundo cultural.
Em uma direção oposta, a criança era
percebida como a semente lançada à terra. Ela é fertilizada, nasce, começa a
crescer. É ela, a semente e, depois, a plantinha, que escolhe os rumos de seu
“crescer e desenvolver-se”. Quem a educa fertiliza a terra, combate as pragas,
poda alguns ramos aqui e ali. Enfim, cria as condições necessárias para que a
planta, senhora de si e livre, escolha como vai crescer e quem deverá vir a ser. Pois sem liberdade de
escolha há o treinamento (como fazemos com cachorros) e a instrução,
mas não há a formação derivada da educação.
Muitas vezes na escola estamos a tal ponto
imersos em uma compreensão produtivista da aprendizagem, que com a melhor das
intenções as nossas perguntas curriculares de praxe dão: “o que é que uma aluna
da quarta série precisa aprender e saber para ser promovida para a quinta
série?” Que conhecimentos práticos, “úteis” e funcionais (como o inglês que
você aprende para ler um manual de computador, e não aprende para ler a poesia
de Robert Frost); “o que é que um jovem precisa adquirir (como se o saber fosse
uma coisa) para passar no vestibular?”
Estas perguntas são também importantes e
não devem ser esquecidas na rotina da escola. Mas elas deveriam vir depois de
perguntas como: “o que é que uma criança de sete anos precisa aprender a saber
para viver plenamente a experiência única e irrepetível de ser uma pessoa com
sete anos?”; “O que é que um jovem deve vivenciar em sua aprendizagem para, ao
invés de tornar-se um adulto competente, individualista e preocupado apenas em
vencer na vida e ser uma pessoa de sucesso, vir a ser um pessoa realmente
humana, um alguém cooperativo, amoroso, solidário e co-responsável não apenas
pelo seu emprego, mas pelo mundo onde vive o trabalho e a vida?”
Carlos Rodrigues Brandão
[1] O livro
é: A história da família no Ocidente
[2] Filhos e vítimas – o tempo da inocência. Artigo
de Pascal Bruckner, no livro A sociedade em busca de valores – para fugir
à alternativa entre o cepticismo e a dogmatismo, livro coordenado por Edgar Morin e Ilya Prigogine,
e Editado pelo Instituto Piaget. E, Lisboa, em 1996. Está na página 57.
[3] A
Descoberta do Outro, de Gustavo Corção. Tenho comigo uma velha 2 edição da Livraria AGIR Editora, de 1945,
de quando eu mesmo era um menino de cinco anos.
[4] Campo Geral, uma das duas novelas do
livro Manuelzão e Miguilim, de João Guimarães Rosa. Pode ser
encontrada também no volume I da Ficção Completa, da Editora Nova Aguilar, do Rio de Janeiro.
Em minha edição, de 1994, está na página 470.
[5] Está nas
páginas 28 e 29,do livro O Profeta, de Gibran Khalil Gibran. Há várias edições deste livro. Tenho comigo a
edição de bolso da L&PM Editora, de
Porto Alegre, em 2001.
[6] Na
verdade o nome completo do livro é: Educação: um tesouro a descobrir Ele foi publicado pela Editora Cortez, de São
Paulo em 1997, com o patrocínio da UNESCO e do
Ministério da Educação.