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Carlos Rodrigues Brandão


1º outubro 2012

Ensinar as crianças, aprender com as crianças


Você deve lembrar algumas imagens daqueles quadros de famílias nobres ou mesmo reais, entre os séculos XVII e XVII. Pelo menos algumas dessas imagens você deve ter visto. Alguns quadros famosos vêm desde pelo menos a Renascença,  outros chegam até mesmo ao século XIX. Há neles, entre outros, um detalhe que chama a atenção. As pessoas estão sempre posando com o ar solene de sua nobreza. Aquelas eram as fotografias de suas épocas. As pessoas estão ali tão majestosas que algumas acabam sendo mesmo ridículas. Mas em algumas há uma imagem dentro da imagem que chama também a atenção. Em muitos desses quadros há crianças: um par de príncipes, uma menina-infanta, um jovem nobre.
E o que há de notável nesses quadros, alguns deles de grandes pintores da época? Há um pequeno e inevitável detalhe muito interessante. Michel Foucault abre um de seus livros mais conhecidos: as palavras e as coisas, com um curioso olhar sobre um quadro de Velásquez, chamado: “as meninas”.
E, lá estão elas. No rosto, no olhar, na pose, nas roupas e nos calçados, são em quase tudo como os adultos. Sendo crianças, elas são réplicas das pessoas adultas ao seu lado.l Não há gestos do rosto ou do corpo, assim como não há vestidos ou sapatos próprios para elas, duas meninas. Assim, as crianças de então, sendo meninos ou meninas, não são mais do que desafortunados e imperfeitos espelhos de como os adultos, seus pais, seus mestres, são, ou acham que devem ser.
Em um belo livro sobre a família e a criança no Ocidente, Phillipe Ariés lembra que por muitos séculos, em toda a Europa a criança e o adolescente mal existiam[1]. Quer dizer, por toda a parte, como agora, meninos e meninas. E mais do que agora, porque mesmo com índices muito altos de mortalidade infantil, as famílias eram quase sempre numerosas. No entanto, de um ponto de vista social, como sujeitos de uma família, de uma igreja, de uma comunidade, de uma comunidade local ou nacional, como um valor de cultura, meninas e meninos eram seres de um pequeno valor. Vagas figuras múltiplas sem maior importância, habitantes de alguns raros lugares e intervalos do mundo dos adultos.
A criança era então percebida como um quase acidente da natureza, ou da vontade de Deus no “crescei e multiplicai-vos”, e a sua razão de ser estava em deixar de ser criança o mais cedo possível. Sua função era crescer, tornar-se um pequeno trabalhador útil em cedo, sobretudo nas famílias mais pobres, aprender um ofício útil, mais do que o saber letrado de seu tempo, e “virar gente”, isto é, um adulto precoce, que quase emergia direto da adolescência.

Até o século XVII, a criança, como tal, não existia nas nossas sociedades. Era uma coisinha à qual se dava muito pouca importância. A vida humana começava realmente entre os 7-10 anos.  O sentimento da infância nasce, na Europa, como  sentimento da família e com a constituição, pelas grandes ordens religiosas, de uma educação separada, que preparava a criança para ávida adulta. Este regime de separação durou os anos cinqüenta e sessenta. Antes desta data a idade adulta era a idade ideal, e a educação consistia em preparar a criança para este período. Atualmente tudo foi alterado[2].

Assim, faltava na imensa maior parte das sociedades em vários séculos do Ocidente, quase tudo aquilo que hoje em dia caracteriza “o mundo da criança”. Não havia o “quarto da criança, de modo algum. O berço era apenas para o bebês. E como era costume uma mãe ter uma seqüência numerosa de filhos, logo o mais velho dava o seu lugar ao que acabava de chegar. Raros os brinquedos, a não ser os que as próprias crianças criavam. Quase nada de comida de criança, de roupas, de calçados, de horários, de  pediatras, de cuidados especiais e de ternos carinhos de pais e dos outros. As crianças deviam ser socializadas com rigor e os castigos, muitos deles violentos, eram muito comuns.
Tudo isto nos leva a pensar algo que a um primeiro olhar de nosso tempo parece muito estranho. E, no entanto é tão comum, tão freqüente e tão variado ao longo das diferentes eras da história e entre as diversas culturas humanas. Uma coisa é aquilo que nós somos biopsicológicamente. Por exemplo: macho e fêmeas, crianças, adolescentes, jovens, adultos e velhos. Outra coisa é a construção sociocultural  daquilo que nós somos, daquilo que devemos ser ou podemos ser por habitarmos uma sociedade e vivermos a sua cultura. Claro. do ponto de vista da natureza, nós somos gerados e nascemos mais ou menos da mesma maneira, e crescemos e nos desenvolvemos seguindo os mesmos ritmos da vida em nós. Mas, ao longo da história da humanidade e, mais ainda, entre as diversas sociedades humanas do passado e do presente, o “ser criança”, o “ser jovem”, o “ser adulto”, o “ser velho”, o “ser mulher” ou o “ser homem” foram e seguem sendo categorias sociais representadas e tratadas de maneiras muito diferentes. Sabemos que há sociedades em que um homem muito velho é tratado como um sábio e recebe uma deferência especial dos “mais moços”. E há outras em que ele próprio deve procurar a sua morte, para deixar mais comida aos “mais moços”. 
A quase inexistência de um “mundo cultural” próprio para a criança, revela que durante séculos, no Oriente e no Ocidente, meninas e meninos  eram considerados  como seres sem lugar próprio, apêndices da casa, da família e da comunidades. O processo apressado de seu desenvolvimento e a passagem ligeira da infância a uma precoce adolescência em que muitas “moças” já estavam casadas e eram mães, importava bem mais do que cada fase, cada estágio do ritmo natural da vida da pessoa. Desde muito cedo a criança era preparada para vir a ser em curto tempo: “um alguém na vida”.
Na mesma idade em que nossos filhos hoje estão escolhendo as primeiras namoradas e as primeiras profissões, jovens indígenas são guerreiros casados, e muitas moças com menos de 16 anos já eram esposas e mães de dois ou três filhos. Você sabe com que idade Julieta morreu por amor a Romeu? E Romeu? Já na beira do século XX, com que idade casou-se o Mahatma Gandhi, com Kasturbai, uma jovem menina que lhe foi escolhida pelos pais e que ele conheceu pouco antes  do dia do casamento?  Até dois séculos atrás, mesmo na Europa, a idade média das pessoas era muito baixa, a era vida breve e era preciso começar cedo a ser “gente grande”.
E as crianças não eram propriamente seres em si, mas seres para os outros. Eram propriedade de seus pais, servas de suas famílias, e  a  infância era compreendida como uma breve e dura viagem a uma precoce idade adulta: aquela em que meninos e meninos começam a “contar”. E começam a contar porque passam do “passivo” da casa para o “ativo” da família, na medida em que através, primeiro do seu ingresso no rol dos serviços domésticos e, depois, em algum trabalho produtivo, crianças e adolescente começavam a contar como atores com um lugar próprio  na família e na sociedade.
Raras crianças pobres sentavam por mais do que três anos nos bancos duros de uma sala de aulas. Os que prosseguiam os seus estudos, sobretudo após o século XVII, eram entregues a uma educação rigorosa e muito pouco sensível aos seus sentimentos, aos seus pensamentos. Crianças e jovens existiam para aprender e obedecer. Para aprender a obedecer. Eram então comuns em várias línguas ditos tradicionais como estes: “criança não tem querer”; “criança não tem sentir”;  “criança não tem pensar”; “criança não tem juízo”. A criança era medida sempre por sua incompletude psíquica e cultural, diante da pessoa adulta educada, tomada como padrão.
Pensava-se a criança e procedia-se para com ela de formas semelhantes a como se fazia com os indígenas (os “selvagens”), com os negros, como os outros que não nós, e que para serem “alguém de respeito” deveriam aprender a ser a cópia mais próxima de “nós mesmos”.
Uma pequena passagem do livro A descoberta do outro, de Gustavo Corção, traduz muito bem o olhar do adulto sobre o sentir, o querer e o pensar das crianças.

O menino achava que as pessoas grandes não tinham bastante seriedade e também nunca se podia contar com elas, porque hoje queriam brincar e amanhã não queriam. Uma coisa agora provocava o riso; a mesma coisa logo trazia castigo. Às vezes a tia perguntava porque estava tão quieto.
- Estou pensando.
A tia fazia cara de pouco caso e declarava que criança não pensa. Criança também não devia ficar ouvindo conversa de gente grande. Todas as coisas dividiam-se com grande clareza entre o que era permitido e o que era proibido; nas histórias também o bom era bom e o mau era mau. O ar era transparente e a luz crua; o mundo era grande e sempre o mesmo. Mudava sempre, mas era sempre o mesmo.[3]

Mas as crianças de antes como as de agora, tinham e seguem  tendo os seus sentimentos, suas emoções, suas sensibilidades, seus pensamentos e suas idéias, seus imaginários, desejos e sonhos. Suas alegrias e seus sofrimentos.
Poucos escritos foram tão sensíveis a este “ser da criança” quanto João Guimarães Rosas que, no entanto, escreveu apenas um pequeno conto para crianças. Se você não conhece ainda (e não sabe o que está perdendo) leia a novela Miguilim, do livro Manuelzão e Miguilim.  Leia os breves e sábios contos do Primeiras estórias  ou de Tutaméia – terceiras estórias, em que meninos e meninas da roça, dos fundos dos sertões de Minas Gerais são os protagonistas.

Era o Dito, tirando-o por um braço. O Dito era menor mas sabia o sério, pensava ligeiro as coisas. Deus tinha dado a ele todo o juízo. E gostava, muito, de Miguilim. Quando foi a estória da Cuca, o Dito um dia perguntou: - “Quem sabe é pecado a gente ter saudade de cachorro?...” O Dito queria que ele não chorasse mais por Pingo-de-Ouro, porque sempre que ele chorava o Dito também pegava vontade de chorar junto.
- Eu acho, Pai não quer que Mãe converse nunca mais com o tio Terez... Mãe está soluçando em pranto, demais da conta.
Miguilim entendeu tudo tão depressa, que custou para entender. Arregalava um sofrimento. O Dito se assustou: - “Vamos na beira do rego, ver os patinhos nadando...” acrescentava. Queria arrastar Miguilim[4].

Aí estão as crianças. Sujeitas ao  “mundo das pessoas grandes”, elas criam como podem os seus próprios “mundos das crianças”. Bem mais do que aprendemos a acreditar, desde muito cedo e, mais ainda, nas idades próximas ao momento do ingresso na escola, elas são pequenos e completos seres de pensamento e de emoção. São seres que vivem as próprias “brincadeiras” com uma criativa seriedade que, quando vista com atenção, sempre nos encanta e emociona. Antes de ingressarem a força no mundo cronometrado e utilitário em que vivemos nós, os adultos, elas habitam o território da gratuidade. Elas vivem um imaginário de idéias, fantasias realistas e emoções de uma enorme fertilidade. E é o nosso “mundo adulto” aquele que, aqui e ali, parece pobre, árido,  utilitário, e pouco criativo, quando comparado com o mundo-dentro-de-nosso-mundo, que as crianças criam e inventam quando pensam, quando imaginam e quando se reúnem para brincarem juntas. Se possível, longe dos adultos.
Bem ao contrário do que uma difusa e crescente “pedagogia da pressa e do progresso” sugere, crianças não são seres incompletos, semi-selvagens e imperfeitos, a quem toca “civilizar”, uma educação iniciada no círculo familiar e continuada na sala de aulas da escola. Em cada momento de suas vidas, em cada passo dos estágios de seus “desenvolvimentos biopsicológicos”, meninas e meninos crianças são seres sensíveis e sábios. Sim, isto mesmo: sábias. Elas são sujeitos de uma vida que não vale pelo que ela (a vida e a criança) “vai ser ainda”, “vai ser um dia”, “vai ser quando crescer e virar gente”. A cada momento de cada dia de suas vidas, crianças são seres plenos de-si-mesmo, e valem pelo que são “agora”, e pela vida que, agora, em cada momento de seu estar-no-mundo, elas vivem.
Meninos e meninas devem ser ensinados em casa, na escola e em outros círculos culturais de socialização, para um dia virem a ser úteis: “um alguém na vida”, não resta dúvida. Mas elas devem ser educadas para algo que vai além, muito além deste propósito instrumental e utilitário. Elas não nasceram para crescerem depressa, realizando em seu ser a ansiosa imagem de nossos desejos paternos ou docentes. Crianças devem ser educadas para aprenderem a encontrar, com o andar de seus próprios passos, os seus próprios caminhos. Devem aprender conosco a serem diferentes de nós. Se possível, melhores do que nós somos.

E uma mulher, que segurava um bebê no colo, disse: Fala-nos dos Filhos.
E ele disse:
Vossos filhos não são os vossos filhos.
São os filhos e as filhas do desejo da Vida por si mesma.
Eles vêm através de vós, mas não de vós,
E apesar de estarem convosco, não pertencem a vós.
Podeis dar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos.
Porque eles têm seus próprios pensamentos.
Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas,
Pois suas almas vivem na casa do amanhã, a qual vós não podeis visitar, nem mesmo em vossos sonhos.
Podeis esforçar-vos em ser como eles, mas não tentai faze-los como vós.
Pois a vida não volta para trás, nem permanece no dia de ontem.
Sois os arcos dos quais seus filhos, como flechas vivas, são arremessados.
O arqueiro vê o alvo no caminho, e Ele vos dobra como o Seu poder para que Suas flechas possam ir longe e velozes.
Deixai que o Arqueiro vos curve com alegria;
Pois assim como Ele ama a flecha que voa, Ele também ama o arco que é estável[5].

Devem aprender a saber descobrir, entre os seus passos e ao longo de seus caminhos, as suas verdadeiras vocações, e, assim, a se realizarem plenamente em-si-mesmos.  Em-si-mesmos, mas através de um aprendizado que desde muito cedo os torne seres da vida crescentemente abertos a três círculos de diálogos fraternos e solidários: o diálogo com-eles-mesmos (a esquecida arte da auto-reflexão, da meditação, da vida interior); o diálogo amoroso com os seus outros; o diálogo amplo e aberto com a Vida e com o seu Mundo.
Pode ser que estes propósitos de uma educação humanizadora (e não robotizadora)  da criança pareça algo ultrapassado e romântico. Este deve ser então o momento de lembrarmos um recente e importante documento da UNESCO dirigido a educadores de todo o mundo. Ele foi elaborado por uma grande equipe internacional de pessoas dedicadas à educação. Foi coordenado pelo pensador francês Jacques Dellors e seu objetivo era traçar as linhas do que deveria ser uma “educação para o século XXI”.  Foi traduzido em várias línguas e em Português tomou este nome: Educação: um tesouro a descobrir[6].
Pois bem. No capítulo 4, o capítulo central do livro, são estabelecido os “quatro pilares da aprendizagem”, os pilares da educação. E, quais são eles? primeiro: aprender a fazer, não apenas no sentido instrumental de praticar bem uma profissão, mas no sentido social de criar contextos mais cooperativos do que competitivos  de trabalho produtivo. Segundo: aprender a aprender, isto é, não aprender acumulativamente conteúdos de conhecimentos prontos, mas aprender ativamente a criar os seus próprios saberes e significados. Terceiro: Aprender a conviver, como o aprendizado essencial de uma vida solidária, co-responsável e generosa. Todo o oposto dos objetivos de competência-competitiva da educação do “mundo dos negócios. Quarto (e aquele em que deságuam os outros três): Aprender a ser. Aprender a ser-si-mesmo. Aprender a criar-se como uma pessoa livre e aberta a estar sempre transformando-se na direção de uma plena realização de suas vida e de seu destino.
Estamos acostumados a projetos quase sempre projetivos. Projetos voltados para um futuro que não sabemos como será, nem para nos e, principalmente, nem para os nossos filhos. Estamos acostumados a projetos de valor  instrumental. Projeto de vida em que vale bem mais o que é útil, rentável, prático, seguro e, se possível, lucrativo, do que é de fato bom, belo e verdadeiro.  O que é que você faria quando sonha ter um filho “médico” e um dia ele toma coragem e confessa que não deseja ser outra coisa a não ser... “bailarino?”.
Educamos “para”. Educamos para que as pessoas deixem de ser  o tempo todo o que são agora, e venham a ser algo diferente do que são, algo a mais, algo além de. E este “a mais” e este “além”, com a melhor das intenções, é sempre desenhado com os nossos olhos e através de nossas mãos. De certo modo este projeto de “ser para o futuro” é inevitável e verdadeiro.
Crianças crescem, mudam, se transformam seguindo leis da natureza inscritas em seus corpos e em seus espíritos. Educar crianças e jovens significa sobrepor a este processo da natureza um outro. Um processo de integração em um mundo de vida social cotidiana através dos aprendizados essenciais de sua cultura.
Mas ao tornarmos esta “educação” a razão central do ensinar alguma coisa, estamos correndo o risco de tornar um dos atos humanos de ida-e-volta mais essenciais e mais misteriosos: o ensinar-e-aprender, algo sempre projetado para um futuro visto como uma arena de lutas, onde, uns contra os outros, vencem os mais capazes, os mais aptos, os mais competentes, os mais competitivos. Ou seja, a imagem perversa do “estudante bem sucedido” segundo os manuais de “sucesso na vida” Daí a falsa pergunta tão freqüente: “para o que serve aprender isto”? Nesta visão pragmática, as crianças precisam ser ensinadas, capacitadas, instrumentalizadas, mas não propriamente educadas. Elas precisam aprender depressa, funcional e formalmente, para serem “promovidas”. Para seguirem “sempre em frente”. Para serem lançadas o mais cedo possível “na vida”, “no trabalho”, “no mercado”.  Para um sempre “amanhã” em nome do qual o próprio presente se torna apenas um tempo a ser superado, deixado para trás. “Cresce menino, e vê se estuda e aprende para você um dia ser alguém na vida”. E talvez ele seja um “alguém de sucesso”, sobretudo se dominar cedo uma variedade enorme de linguagens do computador. Mas que lástima a vida deste “homem de sucesso”, se um dia ele descobrir que “venceu na vida” e nunca leu os livros de João Guimarães Rosa, os poemas de Cecília Meireles, e nunca ouviu os últimos quartetos de Beethoven.
Pois “ser alguém na vida” algumas vezes é:  “tornar-se uma pessoa de bem”, um “alguém honrado, confiável, criativo, generoso e co-responsável pela criação de sua própria vida e do mundo de sociedade e cultura onde ele a vive. Esta poderia ser a pessoa que vive uma vida de qualidade em seu próprio ser, Ou seja, naquilo que ela aprendeu ao se educar. Outras vezes – na maior parte das vezes – “ser alguém” é instruir-se para conquistar uma boa profissão, conseguir um bom emprego e tornar-se depressa uma “pessoa de sucesso”. Um alguém bem pobre de vida interior, mas afortunado o bastante para acumular todos os bens que lhe garantam uma boa qualidade de vida.
Ora, na verdade uma educação repressiva, reprodutiva, socialmente distribuída segundo critérios muito desiguais e, em geral utilitária e instrumental (em que a própria pessoa que aprende é percebida cada vez mais como um “instrumento no mundo dos negócios”) não era, mesmo em séculos passados, a única ou mesmo a dominante. Desde há muitos anos educadores e escolas de pedagogia procuraram compreender a criança de um outro modo, e procuraram meios de educa-la a partir da compreensão profunda de como ela era, como sentia, como pensava e como vivia, a cada momento, a sua experiência presente de vida de agora. Como meninos e meninas são em suas peculiaridades próprias e, não, como uma cópia imperfeita e inacabada da pessoa adulta e educada.
Embora bem menos do que agora, durante toda a Idade Moderna houve uma relativa variedade de teorias sobre a criança e de projetos de pedagogias a elas dirigidas. Duas singelas imagens nos ajudariam a compreender duas posições quase opostas. Em uma delas a criança é desenhada como uma lousa em branco. Como um pequeno quadro-negro vazio que compete a quem sabe: um pai, um mestre, um professor, preencher com o seu saber.  Em seu ser, em sua mente são escritos-inscritos com o saber dos adultos, os símbolos,  os saberes, os sentidos, os significados, as sensibilidades e as sociabilidades com que o infante (aquele que não fala), a criança (aquele que deve ser criado), ou o aluno (aquele que deve aprender) deveria ser educado. Com que ela deveria incorporar à disciplina do corpo, da  mente e do espírito, os conhecimentos úteis e os valores oriundos das diferentes gramáticas  da vida social de seu mundo cultural.
Em uma direção oposta, a criança era percebida como a semente lançada à terra. Ela é fertilizada, nasce, começa a crescer. É ela, a semente e, depois, a plantinha, que escolhe os rumos de seu “crescer e desenvolver-se”. Quem a educa fertiliza a terra, combate as pragas, poda alguns ramos aqui e ali. Enfim, cria as condições necessárias para que a planta, senhora de si e livre, escolha como vai crescer e  quem deverá vir a ser. Pois sem liberdade de escolha há o treinamento (como fazemos com cachorros) e a instrução, mas não há a formação derivada da  educação.
Muitas vezes na escola estamos a tal ponto imersos em uma compreensão produtivista da aprendizagem, que com a melhor das intenções as nossas perguntas curriculares de praxe dão: “o que é que uma aluna da quarta série precisa aprender e saber para ser promovida para a quinta série?” Que conhecimentos práticos, “úteis” e funcionais (como o inglês que você aprende para ler um manual de computador, e não aprende para ler a poesia de Robert Frost); “o que é que um jovem precisa adquirir (como se o saber fosse uma coisa) para passar no vestibular?”
Estas perguntas são também importantes e não devem ser esquecidas na rotina da escola. Mas elas deveriam vir depois de perguntas como: “o que é que uma criança de sete anos precisa aprender a saber para viver plenamente a experiência única e irrepetível de ser uma pessoa com sete anos?”; “O que é que um jovem deve vivenciar em sua aprendizagem para, ao invés de tornar-se um adulto competente, individualista e preocupado apenas em vencer na vida e ser uma pessoa de sucesso, vir a ser um pessoa realmente humana, um alguém cooperativo, amoroso, solidário e co-responsável não apenas pelo seu emprego, mas pelo mundo onde vive o trabalho e a vida?”

Carlos Rodrigues Brandão





[1] O livro é: A história da família no Ocidente
[2] Filhos e vítimas – o tempo da inocência. Artigo de Pascal Bruckner, no livro A sociedade em busca de valores – para fugir à alternativa entre o cepticismo e a dogmatismo,  livro coordenado por Edgar Morin e Ilya Prigogine, e Editado pelo Instituto Piaget. E, Lisboa, em 1996. Está na página 57.
[3] A Descoberta do Outro, de Gustavo Corção. Tenho comigo uma velha  2 edição da Livraria AGIR Editora, de 1945, de quando eu mesmo era um menino de cinco anos.
[4]  Campo Geral, uma das duas novelas do livro Manuelzão e Miguilim, de João Guimarães Rosa. Pode ser encontrada também no volume I da Ficção Completa,  da Editora Nova Aguilar, do Rio de Janeiro. Em minha edição, de 1994, está na página 470.
[5] Está nas páginas 28 e 29,do livro O Profeta,  de Gibran Khalil Gibran.  Há várias edições deste livro. Tenho comigo a edição de bolso da L&PM Editora,  de Porto Alegre, em 2001.
[6] Na verdade o nome completo do livro é: Educação: um tesouro a descobrir   Ele foi publicado pela Editora Cortez, de São Paulo em 1997, com o patrocínio da UNESCO e do Ministério da Educação.
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